No contexto da tecnologia, as redes sociais ganharam força por serem portas para o mundo, muitas vezes inacessíveis para a maior parte das pessoas. O poder de interação nas mãos também dá um protagonismo individual ao usuário, que não necessariamente compreende essa verdade. A vida real tem suas características próprias que são refletidas dentro das redes, sem filtro nem dosagem e, nessa perspectiva, se dá a cultura do cancelamento. No tribunal da internet, como um juiz, repetir os atos de julgamento da vida real na vida virtual, sem pudor ou cortes e, quase sempre, sem direito de defesa.
O primeiro passo para entender o “cancelador” é saber que todo ser humano tem valores, sejam eles de vivência, de tempo, de verdade e as ações dele serão guiadas por esses valores, que são prioridades. E as sociedades ocidentais sempre tiveram o hábito de fazer comentários sobre os outros, como afirma a doutora em História e Antropologia Luísa Melo. De acordo com a professora, a necessidade de se sentir parte de um grupo também é determinante para o agir de cada pessoa.
- O hábito de falar mal de um terceiro, a fofoca, é um fator relevante para a concretização de laços entre as pessoas. Se aproximam e expressam uma determinada semelhança e afinidade à medida que elas condenam outra. Ao mesmo tempo ela se coloca como alguém que é superior ao outro. A diferença hoje é que temos as redes e publicamos isso. Mas a dinâmica é mais ou menos a mesma – disse.
A historiadora comentou também da necessidade que as redes sociais impuseram na sociedade de expor o pensamento constantemente:
- As redes levam o usuário a um tipo de comportamento de exposição permanente do nosso pensamento. O Facebook por exemplo trabalha em cima da premissa dessa exposição, inclusive para qualquer postagem a pergunta é “No que você está pensando?”. Com isso, criamos um valor que expor o pensamento não é algo apenas positivo, mas necessário e isso curiosamente vai contra todo o processo civilizatório.
O jornalista de tecnologia, Pedro Dória, disse que a cultura do cancelamento no Brasil, apesar de recente, é muito forte por conta da própria dinâmica do país, que leva o julgamento para o lado instintivo e não muito racional.
- O Brasil tem uma cultura fortíssima com o linchamento. Isso é uma coisa que nós da imprensa com muito pouca frequência divulgamos. Nas periferias brasileiras linchamentos acontecem o tempo inteiro,físicos a ponto de matar a pessoa, espancamentos coletivos, seguidos de assassinato. Isso é extremamente comum no Brasil, isso sempre foi comum, não é um fenômeno da república, não é do império, não é da colônia: é da cultura brasileira. Então, me parece natural, mesmo pessoas que jamais se imaginam linchadoras. Você pode não perceber o linchamento virtual como sendo algo tão violento mas é uma metáfora digital daquilo, o equivalente no mundo virtual ao que acontece no mundo real.
Dória também destacou que é importante considerar que as redes são regidas por algoritmos que direcionam o conteúdo que vai aparecer para o usuário. Assim como a vida real, as polêmicas são assuntos que mais chamam atenção das pessoas. Em entrevista para o site, o jornalista de tecnologia Pedro Dória, explica como esse processo funciona: ”Essas (as redes sociais) são empresas que vivem, assim como a imprensa, em grande parte de publicidade, então para que elas façam dinheiro, elas precisam que nós estejamos o mais possível dentro dos ambientes das redes sociais, ou seja o facebook quer que você passe a maior quantidade de horas possíveis dentro do facebook, o twitter que que você passe a maior quantidade de horas possíveis dentro do twitter e por aí vai.”
Raquel Gomes, 26 anos, estudante de arquitetura, sempre teve o hábito de usar as redes sociais como um espaço aberto. Ela cancelou a artista Giovanna Ewbank depois de, segundo Raquel, a atriz ter acusado Marina Ruy Barbosa de ser o pivô da traição de José Loreto à Débora Nascimento. Para a estudante, foi uma atitude inadmissível.
- Ela jogou a Bruna Marquezine contra a Marina, sendo que as duas eram amigas de infância. Eu comentei na foto da Giovanna como ela tinha sido traiçoeira e falsa. Ela viu meu comentário e me bloqueou! Soube depois que o Bruno (Gagliasso) postou outra foto com a família e eu entrei na conta dela para ver e estava como ‘usuário não encontrado’ no Instagram.
Por conta da quarentena, a estudante de veterinária Giovanna Souza teve como diversão acompanhar o Big Brother Brasil. Antenada nas redes, a jovem adquiriu o hábito de cancelar todo e qualquer participante que ela discordasse. Fora do reality, ela percebeu que o cancelamento era ineficaz para fazer o cancelado aprender algo.
- Parei de cancelar porque vi que não tinha efeito. As pessoas só vinham a público dizer que se arrependeram, mas quem sabe se é verdade? Não cabia a mim julgar, porque no fundo, ninguém é perfeito e tem atitudes politicamente incorretas o tempo todo.
Por Diva Freitas
Créditos: Diva Freitas
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