Crédito: Shutterstock/Pepsco Studio
A cultura do cancelamento, que ganha força através do linchamento virtual, dá indícios de que é grande o potencial de intolerância ao diferente demonstrado pela geração contemporânea. A psicóloga Cristina Zouein, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, argumentou que o cancelamento está pautado na mentalidade da substituição, onde as pessoas, sejam elas famosas ou não, sofrem objetificações e são canceladas em todo e qualquer momento devido aos posicionamentos sobre os mais diversificados assuntos que podem ser julgados como controversos ou preconceituosos.
De acordo com Zouein, a mentalidade de cancelar muito presente no cenário digital consegue se expandir para outros contextos e é capaz de promover o cancelamento de pessoas de determinados círculos pessoais. Com essa premissa, para ela, a ação se configura em uma seleção de quem escolhemos estar ao lado e, ainda mais importante, de quem optamos por descartar e tratar com desprezo, já que existe o pensamento de que é possível sempre substituir por alguém melhor de acordo com determinadas colocações.
“O cancelamento adota uma linha de raciocínio típica das condições preexistentes no mundo em que vivemos, em que conseguimos traçar nosso pensamento de acordo com a mentalidade da substituição. Muitas vezes, adotamos uma postura de, inclusive, cortar os laços afetivos com conhecidos devido às preferências destas pessoas por julgarmos não ser o mais correto. E o mesmo também vale até para as celebridades e instituições que assumem o papel desempenhado por objetos, e, por isso, facilmente substituíveis”, destaca Cristina Zouein.
A prática de cancelar figuras artísticas é anterior ao surgimento da internet e, consequentemente, das redes sociais, mas é impulsionada pelos novos métodos de interação nos debates interpessoais. Nas plataformas virtuais, os usuários se aproveitam da falta de um contato face to face e sentem-se respaldados para falarem o que quiser sobre quaisquer assuntos. A psicoterapeuta comportamental Emanuella Nicolazzi, da Universidade Federal de Santa Catarina, aponta que através de um teclado e uma tela ligada, muitos exercem o papel de juízes virtuais, já que acreditam receber uma voz na sociedade não concedida em outrora, e aproveitam erros de celebridades, sejam eles pequenos ou não, para julgar e rotular as pessoas.
Ainda que a eficácia da cultura do cancelamento seja questionada em diversos momentos por Zouein, o que se pode destacar nesta é a mentalidade de rebanho e o movimento de caça às bruxas presentes na maioria dos casos de personalidades canceladas. Nesse cenário, o cancelamento consegue ser observado como uma busca do pertencimento, em que muitos sentem a necessidade de estarem inseridos em grupos e causas, ainda que isto represente a destruição virtual de alguma personalidade. Para ela, uma das principais consequências maléficas da cultura do cancelamento é notoriedade da falta de diálogo geracional, onde procurar os defeitos nas relações interpessoais é a regra e saber lidar com as diferenças é a exceção.
Em uma espécie de guilhotina dos dias atuais, a cultura do cancelamento não só representa a dificuldade de lidar com o diferente, mas também uma falta de empatia com as personalidades públicas, que são entendidas como aqueles que não poderiam cometer equívocos. Ainda que não seja um fenômeno tão recente como o ato de cancelar, tratar as celebridades, por exemplo, como um exemplo de comportamento fazem com que elas se desumanizem, o que faz com que muitos esqueçam que estes são cabíveis de situações errôneas e não os poupem de ataques severos.
- Conseguimos identificar um evidente sinal do que diz respeito a nós mesmos sobre a cultura do cancelamento. Muitos de nós não permitimos dialogar com interpretações distintas das nossas e isso resulta em uma sociedade que, cada vez mais, enfrenta dificuldades nos relacionamentos e adquire viés mais polarizada nas mais variadas situações. Percebe-se, então, que o as pessoas deixaram de desenvolver algo tão simples nas relações humanas, como o diálogo, e partirmos para uma forma de barbárie virtual que opõe uma legião de anônimos contra algumas figuras públicas -, explicita Zouein.
Desta maneira, como é bem observado pela psicóloga, a cultura do cancelamento é o conflito entre personalidades vistas como poderosas que cativam seguidores ao redor de todo o globo contra perfis anônimos que monitoram as ações de celebridades e sentem a necessidade de expô-las de acordo com as suas ações quando julgarem necessário. E é por meio de tal monitoramento que os cancelamentos ocorrem em demasia nas plataformas virtuais, onde a incapacidade de perdoar qualquer “escorregão”, mais uma vez, expõe a dificuldade geracional de dialogar com algo julgado como non sense.
Redes sociais impulsionam cancelamentos
Devido à facilidade de uso, redes como o Twitter têm sido palco de grandes cancelamentos virtuais especialmente nos últimos anos após a forte polarização nacional oriunda das últimas eleições presidenciais. Esses veículos impulsionaram não só as discussões ideológicas, como o ato de cancelar de maneira rápida e agressiva, e também se transformaram em um ambiente cada vez mais violento, que resulta em consequências principalmente para os usuários mais jovens, que simultaneamente são os mais ativos.
- A geração Z é a principal afetada nesse cenário, já que é a mais ativa e, desde a infância, acredita em uma premissa de que a internet é uma questão fundamental de sobrevivência pessoal e na manutenção das relações sociais. Nessas redes, tudo é muito intenso e aquele que cancela sente a necessidade de estar aliado a determinada causa de maneira atuante, ao mesmo tempo em que não se sensibiliza com a dor dos cancelados e muito menos se sente responsabilizado - explica Emanuella Nicolazzi.
Dessa maneira, a cultura do cancelamento pode ser observada como um produto das transformações nascidas a partir do uso frequente das redes sociais e o imediatismo, já existente em outrora, fez com que a necessidade de rápido descarte migrasse do meio real para o virtual. Segundo o psicólogo e doutor em psicologia da Universidade de São Paulo Leonardo Goldberg, a cultura do cancelamento se faz uma prova de que a geração em questão tem o desejo de transformar o planeta através das redes on-line, ao mesmo tempo que ignora a história da humanidade ao rejeitar a evolução através do diálogo com aquele que pensa de maneira distinta.
- O cancelamento busca fazer com que o mundo seja uma extensão de posicionamentos únicos. Os canceladores se negam a aceitar que os seres humanos são distintos e insistem em acreditar que é possível cancelar o mundo todo devido a alguns erros que poderiam ser resolvidos através de um diálogo - pondera Leonardo Goldberg.
Evidencia-se, que aos olhos de analistas sobre o assunto, as redes sociais possibilitam um canal mais direto do público com os perfis das celebridades, semeando condições para que a cultura do cancelamento permaneça presente e marcante nos dias atuais de nossa sociedade. E assim, o usuário é capaz de participar de maneira ativa e julgar ações que ele julgar necessárias da maneira que ele bem entender. Nessa atuação, a cultura do cancelamento ressalta que a falta de diálogo transcende ao meio digital e contribui para que inúmeras figuras públicas sejam canceladas semanalmente.
Por: Lucas Fontenelle
Komentar